Ternos têm planejamento, controle e prestação de contas de forma simples, mas deixam de fazer orçamento
Ituiutaba completa 118 anos no próximo domingo (16/09). Desde 2006, o município também é casa da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pois ali está o Campus Pontal, com onze cursos de graduação e dois programas de pós-graduação. Em julho, a universidade e a comunidade encontraram-se para uma banca de trabalho de conclusão de curso: o estudante Tarcísio Luiz Cândido, do curso de Ciências Contábeis, orientado pela professora Marli Auxiliadora da Silva, defendeu a monografia “Bandeiras ao alto: panorama econômico-financeiro do Congado ituiutabano” e os ternos fizeram a trança de fitas dentro do campus.
No município existem nove ternos de Congado, que todo ano, no terceiro domingo de maio, desfilam ornamentados pelas ruas, dançando ao som dos maracanãs, ripiliques e gungas, e encenam a coroação do rei do Congo. As roupas, os instrumentos e a comida servida na festa são custeados com recursos dos próprios congadeiros, doações da comunidade e verba pública. Como os ternos fazem a gestão financeira desses recursos? É o que investigaram os pesquisadores da UFU.
“Eu sou congadeiro desde criança. Participei de dois grupos e sempre acompanhei minha avó na preparação do festejo. Quando, em 2004, minha família criou um terno, eu vi a dificuldade que era gerenciar um grupo para levar essa manifestação pra frente”, recorda Cândido, sobre a motivação do estudo. Dos nove ternos da cidade, a pesquisa analisou os sete filiados à Irmandade de São Benedito – Congo Camisa Verde, Congo Real, Congo da Libertação, Moçambique Camisa Rosa, Moçambique Lua Branca, Moçambique Águia Branca e Marinheiro de Santa Luzia participaram do estudo -, observando como são feitos o planejamento, o orçamento, os controles e a prestação de contas.
A pesquisa
Cândido e sua orientadora foram a campo fazer entrevistas e coletar dados para o trabalho. As entrevistas foram gravadas com a diretoria de cada terno e com representantes da Fundação Municipal Zumbi dos Palmares (Fumzup). Nas visitas aos quartéis dos grupos e à sede da fundação, os pesquisadores também observaram os documentos dos ternos.
Após a apuração, as informações foram tratadas por meio de estatística descritiva e passaram por análise de conteúdo, mantendo-se o sigilo das fontes. Cândido observou a periodicidade de reuniões, a delegação de tarefas, as ações para obtenção de recursos, as compras, os formatos de controle (físico e eletrônico) e de prestação de contas (oral e físico) e a confrontação entre o que foi previsto e realizado.
Da esquerda para a direita, os professores Marcus Vilela e Maria Aparecida Vilela, que, integraram a banca examinadora, o estudante Tarcísio Cândido, a orientadora Marli Silva, a professora Luciane Dias, do curso de Pedagogia do Pontal, e a superintendente de Políticas Afirmativas e Articulação Institucional da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania, Yone Maria Gonzaga (Foto: arquivo do pesquisador)
Parte dos recursos financeiros para as festas é repassada por instituições públicas, mas não há legislação própria que assegure os repasses. Em 2018, essa verba foi de R$ 56 mil (R$ 32 mil da Prefeitura Municipal, R$ 15 mil da Câmara Municipal de Vereadores, R$ 5 mil da Fundação Cultural de Ituiutaba e R$ 4 mil da Fumzup), divididos em partes iguais, no valor de R$ 7 mil, entre os sete ternos e a Irmandade de São Benedito.
Os grupos também fazem ações independentes para captação de recursos. O exemplo mais tradicional são os leilões de prendas. Em todos os ternos pesquisados, Cândido também constatou que os integrantes utilizam recursos próprios, principalmente, para o custeio de vestimentas, manutenção de instrumentos e compra dos itens vendidos nos leilões. Um dos dirigentes declarou que, embora tenha recebido R$ 7 mil de recursos públicos, seu terno gastou em média R$ 10 mil neste ano.
Resultados
A pesquisa observou que todos os ternos fazem planejamento, controle e prestação de contas, mas não fazem orçamento por completo. “O ato de orçar os valores dos produtos e/ou serviços usados na realização das festividades é habitual apenas quando se refere ao gasto de recursos próprios arrecadados pelo grupo ou quando o integrante tem que custear parte do seu traje, por exemplo”, explica Cândido em sua monografia. “Em relação aos repasses públicos recebidos, os ternos não fazem orçamentos para realização das compras, visto que é a própria Fumzup a responsável pelos processos licitatórios. O terno apenas indica quais itens (gastos) serão custeados com esse recurso”, completa.
A conclusão foi de que os diretores dos sete ternos de Congado ituiutabanos, filiados à Irmandade de São Benedito, têm conhecimento, de senso comum, dos instrumentos de gestão financeira, embora não os reconheçam pelos nomes usados no meio empresarial e não usem modelos instituídos na contabilidade. “A prática de controle é muito básica. É caderninho. Um clipe com todos os valores que são gastos com recurso próprio, porque o gasto que é público quem administra é a Fundação Zumbi dos Palmares”, explica a professora Silva.
O planejamento é feito em um ano, considerado “curtíssimo prazo” pelos pesquisadores. Também foi constatada a falta de registros permanentes e informações que possam ser usadas para comparação ao longo dos anos, pois os documentos são descartados. “A contabilidade fala que para você fazer projeções futuras você olha o que já aconteceu. Mas eles [os dirigentes dos ternos] não têm esse hábito”, diz a orientadora.
Os pesquisadores da UFU concluíram o estudo com sugestões para melhorar a gestão financeira dos ternos de Congado, como o planejamento conjunto entre os ternos para definir itens comuns a serem orçados e comprados e o fomento à criação de um Conselho da Comunidade Negra (e congadeira) a fim de ter representantes junto ao poder público.
O Congado e a academia
O Congado é um rito milenar originado na África, introduzido no Brasil pelos primeiros negros escravizados, como forma de homenagear seus antepassados e divindades. As santidades – como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito – foram sendo inseridas para que o rito fosse aceito pela Igreja Católica.
As festividades do Congado eram uma comemoração de diversas nações em favor do rei do Congo. Segundo a narrativa histórica, citada por Cândido em sua monografia, o soberano africano Chico-Rei foi trazido escravizado ao Brasil e, por meio de seu trabalho na mineração, conseguiu comprar sua liberdade. Então, ele passou a organizar festas em louvor a Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário, trajado de coroa e cetro, acompanhado de sua corte, músicos e dançarinos.
No Brasil, as festividades do Congado acontecem em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. O primeiro registro é uma carta datada de 1552. No Pontal do Triângulo Mineiro, os festejos começaram em fazendas e nos arredores da cidade e, com o passar dos anos, tornaram-se conhecidos e chegaram à zona urbana. Mas a entrada na Igreja Católica só foi autorizada em 1956.
Ternos de Congado fizeram “trança-fita” no Campus Pontal, no dia da defesa de TCC de Tarcísio Cândido, em 13 de julho (Vídeo: arquivo do pesquisador)
“O terno é como uma família e existe sempre uma figura feminina muito forte. Dos entrevistados nós tínhamos apenas duas mulheres presidentes e os outros eram todos homens, mas sempre tinha uma figura feminina muito forte ali por trás”, conta a orientadora da pesquisa.
Silva também foi a campo. “Eu sou professora há muito tempo. Tenho mestrado e doutorado. Às vezes a gente vai à comunidade achando que vai ensinar. Mas, na realidade, a gente aprende muito”, relata. A delegação de tarefas, a responsabilidade de cada congadeiro e a liderança compartilhada foram as principais lições para a pesquisadora. “Eles dizem: ‘eu não me preocupo, porque se um determinado setor vai fazer alguma coisa, é responsabilidade daquele setor’. Eles sabem que no dia da festa aquilo tem que estar pronto”, explica Silva.
A professora defende o uso de metodologias mistas – qualitativas e quantitativas – e o trabalho de campo. “Para você entender comportamento você tem que ir lá, tem que vivenciar. Têm uns três anos que todas as minhas orientações, quando envolve pesquisa qualitativa, eu vou a campo junto com eles [os alunos orientandos]. E é muito bom porque eu tenho aprendido bastante. O ensino e a aprendizagem é isso: essa troca”, define.
Cândido já era congadeiro, mas passou a conhecer melhor a história da sua cultura. “A gente apresenta um breve histórico do Congado e têm informações lá que eu mesmo desconhecia. Saber como cada grupo foi gerado, as motivações de cada um é muito importante. E é uma outra visão dentro do nosso curso [Ciências Contábeis], que também consegue, a partir dessas ações, abordar outras áreas”, conclui.
comunica.ufu.br
(foto: Eduardo Giavara)