Trajeto a pé até Romaria é realizado em rodovias por pessoas de diversas regiões do país (Foto: Marco Cavalcanti)
Um caminho que reforça o pensamento de fé a cada passo. A rota final é Romaria, município do Triângulo Mineiro. Um território denominado santo, onde, durante a primeira quinzena de agosto, é realizada a festa em devoção à Nossa Senhora da Abadia, tradição que neste ano completa 148 anos. Nessa jornada, espaços, paisagens e cotidianos são modificados com a finalidade de, talvez, conseguir graça em uma causa que parece perdida.
Com o objetivo de compreender como e por quê um local se torna sagrado, a pesquisadora e professora da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (Eseba/UFU) Luana Moreira Marques, orientada pelo professor Vicente de Paulo da Silva, do Instituto de Geografia (IG/UFU), desenvolveu, durante três anos, no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo/UFU), a tese intitulada “A peregrinação ao sagrado: os caminhos que levam a Romaria/MG”, numa trajetória metodológica de juntar peças.
O quebra-cabeça
Marques contou com revisões bibliográficas e análise de documentos como suas primeiras peças. Ela identificou que a devoção à Nossa Senhora da Abadia iniciou no norte de Portugal, de onde veio boa parte das pessoas que formaram o Triângulo Mineiro. “Quando fui para Portugal, conversei com as pessoas, fui no santuário. Foi quando eu consegui juntar as peças da história. Lá consegui acesso a muitos documentos que não têm no Brasil”, explica.
Com o panorama histórico traçado, a professora colocou o pé na estrada rumo a Romaria na busca por personagens que compõem o cenário da peregrinação. Durante o trajeto, ouviu histórias de pessoas que chegam até o destino com os pés feridos, exaustos por terem algum tipo de doença ou por carregarem objetos, como uma cruz. Outros relatam que foram agraciados na rota.
Há aqueles que, por terem passado dificuldades no caminho, decidiram ajudar os romeiros trabalhando voluntariamente em barracas que ficam na beira da rodovia. Nessas tendas, colaboradores prestam assistência, fornecendo alimentação, descanso e até massagem nos pés.
Diversidade de pessoas que realizam o trajeto é observada pelos pés (Imagem: Arquivo da pesquisadora)
Por ser um longo percurso – de Uberlândia até Romaria, por exemplo, são cerca de 90 quilômetros – muitos vão deixando pertences na estrada. A pesquisadora relata na tese que, após horas de caminhada, viu um senhor que decidiu se livrar de sua mochila por não aguentar mais carregá-la. “Toda peregrinação acontece isso das pessoas jogarem coisas fora. Pelo medo de passar dificuldade, vão carregando. Mas, com o passar dos quilômetros, elas [as coisas] deixam de ser importantes. Muita gente vai jogando fora para o peso ficar menor. Isso me lembra a vida da gente”, conta.
Já no município, que tem cerca de 3.500 habitantes, outros personagens surgem. Com a intenção de conseguir algum dinheiro extra, desenvolve-se o comércio informal, que oferece desde produtos artesanais até o aluguel de casas ou terrenos. “Tem quem vai para vender as coisas em uma barraca, mas não tem onde ficar. Onde elas dormem? Nunca tinha pensado nisso até me contarem. Eles dormem na barraca por 15 dias para não pagar aluguel e, principalmente, porque se deixarem, a barraca é roubada”, afirma Marques.
Barracas são montadas em terrenos alugados (Imagem: Arquivo da pesquisadora)
Para alugar uma casa durante o mês da festividade, é preciso desembolsar cerca de R$ 3 mil, sendo esse valor sete vezes maior do que o cobrado em outras épocas. Também é possível alugar calçadas e terrenos para acampar ou montar barracas. Alguns grupos vão preparados. É o caso do acampamento do carro de boi, em que famílias usam seus veículos próprios para se locomover e habitar Romaria por alguns dias.
O município, que recebe em torno de 500 mil fiéis ao longo do ano, acaba se modificando. “Elas [as pessoas] constroem uma outra cidade e, depois que saem, ela ainda está mudada. Isso, para mim, me soa muito poético, porque não temos dimensão dessa festa”, explica a pesquisadora.
Peças complexas
Para além da beleza do sagrado, a festa em devoção à santa acarreta problemas que poucos olhares desejam observar. O saneamento básico é um deles. Com tantas pessoas morando em barracas, terrenos ou veículos, a solução temporária são os banheiros químicos. Porém, existem aqueles que acabam urinando ou defecando nas ruas ou em objetos como garrafas plásticas ou caixas.
Marques conta que, quando participava da festa com sua família, não notava essas situações. “Comecei a observar coisas que eu não enxergava no meu cotidiano. Quando a festa acaba, enquanto não vem a primeira chuva, a cidade não fica limpa, por toda essa questão do que as pessoas deixam ali”, explica.
No contexto religioso, ainda são tabus alguns temas investigados na pesquisa. É o caso dos pedintes que se juntam na calçada da igreja matriz em busca de ajuda dos romeiros. Há, inclusive, um espaço identificado para pessoas com hanseníase. Em paralelo, há as casas de prostituição, que se tornam um grande negócio durante os dias de festividade. “Todo mundo sabe que existe, sabe que é importante para a festa, mas para descobrir onde era ou como funcionava levou um tempo para conquistar a confiança das pessoas”, afirma a pesquisadora.
Finalmente, a última peça
A tese, que iniciou em 2014, teve parte da produção realizada fora do país. Entre junho e dezembro de 2015, Marques participou do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, realizando os estudos na Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, na França, com orientação da professora Maria Gravari-Barbas. Já a defesa do trabalho ocorreu em maio de 2017.
A professora conta que, quando iniciou a pesquisa, foi motivada por suas memórias de infância, de quando participava da festa em devoção à Nossa Senhora da Abadia com seus pais. “Lembro da época que fomos distribuindo laranjinha para o pessoal no caminho e meu avô fazendo o trajeto na estrada. Essas coisas foram voltando na minha memória. De onde vem essa devoção? Fui vendo a importância que essa cidade tinha no Triângulo Mineiro e no entorno”, conta.
Após ter o trabalho finalizado, ela revela que conseguiu descobrir uma riqueza de informações que desconhecia quando apenas era mais uma participante na multidão. “Eu não esperava montar esse quebra-cabeça porque, quando comecei o doutorado, eu nem enxergava esse quebra-cabeça. Eu queria fazer um trabalho que sensibilizasse, que eu ouvisse as pessoas que participassem disso e contar uma história. Quando eu terminei, acho que contei mais que uma história, eu fiz parte”, afirma.
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